Thursday, November 30, 2006

O descompasso entre o anúncio e a prática

SÃO PAULO - O governo federal tem sido mais eficiente nos anúncios de medidas na área econômica do que na sua execução. Levantamento feito pela Agência Estado, com base nos principais pacotes oficialmente divulgados pelo Governo Lula nos últimos meses, mostra que, na maior parte deles, uma parcela importante das medidas não foi colocada em prática. Na visão de consultores especializados e ex-integrantes da equipe econômica, problemas de gestão no setor público, disputas internas de poder e o que parece ser uma ansiedade do governo em apresentar resultados rápidos à sociedade explicam o notável descompasso entre o que é anunciado e o que é aplicado no Brasil.

Parte das medidas precisa apenas de maiores esclarecimentos por parte do próprio governo. Um bom exemplo está na Medida Provisória (MP) do chamado "pacote cambial", aprovada ontem pelo Senado, e que, entre outros itens, autoriza as empresas a manterem no exterior 30% do valor de suas exportações. Também transfere, para a Receita Federal, parte das atribuições de controle cambial exercidas hoje pelo Banco Central. Ocorre que a Receita ainda não se manifestou sobre a maneira como os exportadores devem proceder (por exemplo, na apuração dos valores e dos prazos) dentro das novas normas. E o resultado é que as empresas que poderiam estar utilizando os benefícios dessa nova legislação simplesmente não o fazem.

"Passado esse tempo todo da publicação da MP cambial, a Receita Federal ainda não divulgou uma regulamentação para a matéria, uma carta circular ou algo do gênero, motivo pelo qual ninguém no setor quer se arriscar a fazer algo dentro dos novos moldes. Sempre tivemos do BC uma verdadeira bíblia de detalhes sobre como atuar. E hoje só temos perguntas sem respostas", afirma o presidente da Seguradora de Crédito do Brasil (Secreb), Werner Sönksen.

A falta de regulamentação inviabiliza também uma série de outras medidas econômicas anunciadas recentemente pelo governo. É o caso, por exemplo, da maior agilidade na portabilidade do crédito, um dos principais itens do pacote de redução do spread bancário anunciado no começo de setembro pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega. Falta regulamentar a isenção da CPMF na portabilidade da dívida. E enquanto essa regulamentação não vem, a realidade para o tomador que quer transferir sua dívida bancária de uma instituição para outra continua a mesma: custos impeditivos e muita burocracia.

O item mais importante desse "pacote do spread", a regulamentação do cadastro positivo, é outra medida que está há meses na boca do forno e ainda não saiu. A criação de um cadastro com informações positivas sobre os tomadores - hoje só existem cadastros negativos - é a grande aposta do governo para aumentar a oferta de crédito e baratear os custos dos empréstimos. No final de setembro, o secretário de Política Econômica da Fazenda, Júlio Sérgio Gomes de Almeida, chegou a anunciar que a MP com essa regulamentação seria publicada dali a uma semana. Até agora, nada.

Obviamente, é preciso considerar que há regulamentações complexas - e que, portanto, levam algum tempo para serem definidas e aplicadas - e que muitas das medidas anunciadas nos pacotes econômicos hoje estão em pleno funcionamento, beneficiando a economia. A ineficiência da gestão no setor público tampouco é um fenômeno exclusivo deste governo. No entanto, afirmam as fontes ouvidas pela AE, existe praticamente um consenso de que o Governo Lula - e especialmente o Ministério da Fazenda - tem antecipado de maneira exagerada os anúncios que faz, sem que as medidas e projetos estejam devidamente concluídos.

"Parece que há uma ânsia por mostrar resultados sem que as coisas estejam completamente prontas. Isso tem sido especialmente visível nos últimos meses e, provavelmente, será o caso também desse pacote fiscal que o governo está divulgando a conta-gotas, sobretudo a magnitude das desonerações prometidas pelo ministro da Fazenda", comenta o diretor para América Latina da consultoria Eurasia Group, Christopher Garman.

Existem também casos em que o governo aproveita regulamentações pendentes há tempos apenas para "engordar" os pacotes que anuncia. Exemplo disso é a redução na contribuição do Fundo Garantidor de Crédito (FGC), que o governo anunciou entre as medidas do pacote do spread bancário. Para se ter uma idéia, a regulamentação estava na fila de espera do Conselho Monetário Nacional (CMN) antes de o presidente Lula assumir a Presidência em 2003.

Em outros casos, medidas aparentemente simples, como a criação de um portal na internet para facilitar a vida do mutuário - item que o governo anunciou no pacote de incentivo ao setor imobiliário - ficam aparentemente esquecidas. Ou não passam do próprio anúncio, caso do pacote de estímulo à co-geração de energia com o uso de biomassa, que o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, prometeu, em setembro, sairia até o fim do ano e do qual nunca mais se falou.

"Se não há um acompanhamento de perto de cada trabalho, de cada medida, se não há uma cobrança da imprensa, até as coisas que foram anunciadas com pompa em Brasília acabam não saindo ou até sendo esquecidas. É impressionante a quantidade de matérias que estão na fila para serem regulamentadas", explica um ex-representante da equipe econômica que deixou o governo há algum tempo.

Nesse contexto, o governo acaba abrindo espaço para críticas de diversos segmentos da economia que seriam beneficiados com as medidas anunciadas. O setor agrícola, por exemplo, está em pé de guerra com o Executivo para conseguir alguns dos benefícios anunciados no famoso "pacote agrícola", que prometia incentivos bilionários para o setor ao longo de alguns anos.

"Daquela pauta imensa de promessas, quase tudo o que havia de importante ficou paralisado, com destaque para as chamadas ações estruturantes no setor, como a liberação das garantias. O governo anuncia as medidas, mas não as concretiza, não as fecha. E a gente é que fica com a brocha na mão", espeta o assessor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Luciano Carvalho.

O efeito disso tudo é que a credibilidade dos anúncios que a equipe econômica realiza vem caindo a cada pacote. Alterar estratégias de investimento com base apenas no que o governo anuncia, mesmo que oficialmente, nem pensar, afirmam em coro empresários do setor privado. Não por acaso, o "pacote do crescimento" que o governo vem divulgando a conta-gotas está cercado de ceticismo.

"O ministro Mantega anunciou na semana passada que serão utilizados recursos de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões do FGTS para subsidiar o financiamento habitacional das classes de baixa renda. Só que nem sequer o conselho curador do FGTS, que é quem decide as destinações do fundo, debateu esse assunto. Não adianta anunciar uma coisa como se ela fosse decisão exclusiva de um único órgão do governo", critica a economista Ana Carla Costa, ex-BC e hoje na Tendências Consultoria.

Antes das últimas eleições presidenciais, muita gente atribuiu a pressa do governo em anunciar "pacotes" antes de estarem concluídos por interesses meramente eleitorais (só no período, foram anunciados os pacotes do setor imobiliário, do spread bancário, da biomassa e da educação). Certa ou não, é uma explicação que não se encerra em si mesma. Há pendências importantes de mudanças anunciadas há muito mais tempo e que também não saíram de maneira efetiva do papel.

Entre elas, destaca-se a regulamentação da reforma da Previdência de 2003, com a criação de um fundo complementar para os novos servidores públicos. Embora de importante impacto econômico, até hoje não saiu. Nada mais oportuno para se relembrar no momento em que o governo prepara mais um de seus pacotes, agora focado no maior crescimento da economia e no controle dos gastos públicos. Pelo menos de acordo com o que foi anunciado até agora.


Veja, abaixo, a lista de algumas medidas econômicas anunciadas pelo governo (pacotes) e o que não foi implementado delas até agora:


Pacote
Spread Bancário
Data do
anúncio
5 de setembro
O que não
saiu:
- MP do Cadastro Positivo
- Isenção da CPMF na portabilidade do crédito
- Ampliação da Central de Risco do BC (por motivos orçamentários, pouca
gente acredita que fique pronta no cronograma estipulado)

Pacote
Setor Imobiliário
Data do
anúncio
12 de setembro
O que não
saiu:
- Crédito Consignado para a habitação
- Portal do mutuário
- Inclusão das empresas de construção no Simples

Pacote
MP do Câmbio
Data do
anúncio
26 de julho
O que não
saiu:
Esclarecimentos da Receita Federal sobre os procedimentos a serem adotados

Pacote
Incentivo ao setor agrícola
Data do
anúncio
Diversos anúncios a partir de 2004
O que não
saiu:
- reformulação do Decreto 4.074
- Restabelecer o quorum de maioria simples para a liberação comercial de
organismos geneticamente modificados (OGM) e agilizar as análises dos
processos
- Sanção presidencial do Projeto de Lei de Conversão da Medida Provisória 285
- Aprovar e implementar a liberação das garantias do Programa de
Saneamento de Ativos (Pesa) e securitização proporcionalmente aos valores
já pagos

Pacote
Incentivo à co-geração da Biomassa
Data do
anúncio
Final de setembro
O que não
saiu:
O próprio pacote

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